Friday, October 7, 2011

A responsabilidade do Estado é, portanto, a de demonstrar que cobra com justiça aquilo que é devido e que o aplica com justiça e com eficiência
António Sousa Franco, I Congresso Português de Ética Empresarial, 25.05.1996


A importância do controlo das finanças públicas
A criação de consensos passa pela criação de arranjos institucionais no âmbito dos quais os representados e o governo possam explorar os potenciais ganhos da realização de transacções. Assim, para que um consenso possa emergir é necessário que tais arranjos existam . Todavia, boa parte desta discussão parte do pressuposto de que os agentes respeitam as regras do jogo, pois de outro modo a realização de acordos está dificultada pelo facto de receio de ‘deserção’ (i.e., falta de cumprimento) da outra parte, por esta não temer a penalização que daí decorre . Este pressuposto não é, no entanto, universalmente válido, pense-se, v.g., nos sistemas políticos de muitos países em vias de desenvolvimento.

O aumento da transparência e da responsabilização no processo de decisão financeira torna mais custoso para os agentes violar as regras ou renegar os acordos . Deste modo, os agentes tenderão a respeitar a hierarquia de prioridades inicialmente definida e a diligenciar no sentido da obtenção dos resultados a que inicialmente se obrigaram, excepto no caso de alteração superveniente grave das circunstâncias, caso em que poderão recorrer a este facto para justificar uma alteração daquelas prioridades.

Por outro lado, a ilusão do contribuinte induzida pelo decisor público interessado na manutenção dos níveis de despesa pública, fazendo aquele perceber o custo dos programas de despesa pública como menor do que efectivamente é, baseia-se frequentemente na ausência de técnicas orçamentais de medida e controlo da despesa. A complexidade do processo orçamental e a falta de transparência intencional que o regulador lhe introduz contribuem para a colocação do eleitor numa situação de informação incompleta relativamente à aplicação dos recursos público.

Para além disso, uma vez que os recursos que financiam o orçamento público são recolhidos da generalidade dos cidadãos, mediante principalmente a cobrança de impostos, o custo das prestações públicas solicitadas por cada sujeito tende a ser percebido por este num valor inferior ao custo social total que os programas de despesa em causa envolvem. E como os benefícios são concentrados no conjunto restrito de sujeitos que consomem os serviços e bens fornecidos pelo Estado, a sua dimensão vai ser sobrestimada por cada um destes. Assim, grupos restritos de sujeitos a exercer uma procura de fornecimentos públicos tenderão a pressionar por um nível de despesa pública superior ao óptimo social. Este raciocínio mostra a necessidade de adoptar mecanismos de controlo e condicionamento do orçamento na vertente da despesa. E esse controlo tem que ser substancial, averiguando-se a conformidade da atribuição de recursos públicos com o interesse público e aferindo-se a coerência de cada atribuição com a lógica do sistema . O desenvolvimento das concepções funcionais de finanças públicas, que tomam o orçamento do Estado como um instrumento de acção económica, veio pressionar no sentido da necessidade de instrumentos de controlo da despesa pública que permitam averiguar da sua adequação aos resultados económicos visados, não se bastando com um controlo de mera legalidade.

Esta discussão insere-se numa outra, mais ampla, que se traduz na necessidade que os governos cada vez mais sentem de tentar melhorar a eficácia e transparência das normas jurídicas, para o que carecem de uma avaliação analítica sistemática dos efeitos que as alterações propostas implicam para a sociedade em geral e para os agentes económicos em particular. A avaliação do impacto das normas jurídicas (Regulatory Impact Analysis, RIA) surgiu nos anos oitenta e abrange um conjunto de métodos destinados a calcular os efeitos positivos e negativos das normas existentes ou em elaboração. Esta avaliação deve servir como um guia para melhorar a qualidade da decisão política e administrativa, tendendo para a neutralidade e objectividade e servindo importantes valores de transparência, participação cívica e responsabilização dos diferentes actores intervenientes na actividade do Estado. Os seus principais objectivos resumem-se a quatro. Primeiro, visa-se o aumento do conhecimento do impacto real de determinada acção, incluindo os seus custos e benefícios. Segundo, pretende-se a integração de uma multiplicidade de objectivos políticos, funcionando como um instrumento de avaliação e de coordenação, ao forçar o decisor a tomar em consideração não apenas os seus objectivos estritamente considerados, mas também a globalidade dos efeitos produzidos, daí que, v.g., se deva aferir o potencial efeito neutralizador que pode ocorrer quando um novo benefício fiscal é introduzido no sistema legal já em vigor. Terceiro, busca-se a promoção da transparência e da concertação social. E, por fim, empreende-se um esforço no sentido do aumento da responsabilização, permitindo a demonstração de como a acção do Estado beneficia ou não a sociedade e diminuindo a desresponsabilização que muitas vezes decorre da ignorância dos efeitos das acções empreendidas.

A tradicional falta de controlo público de que a despesa fiscal tem beneficiado prende-se com o seguinte raciocínio: quando os cidadãos transferem recursos para o Estado, eles têm o direito de saber como esses recursos são aplicados e de controlar esse uso; mas no caso dos benefícios fiscais o que acontece é a não cobrança do imposto, pelo que nada há a controlar. Contudo, uma concepção mais abrangente da função das contas públicas conduz-nos a um resultado diferente. Se se entender que o seu objectivo não se resume ao controlo do uso de recursos públicos mas abarca a análise do impacto do sector público na economia e se se aceitar, como defendeu Surrey, que a despesa fiscal é funcionalmente equivalente a um programa de despesa pública directa, a consequência é a de que é necessário controlar tanto a receita fiscal cobrada como a perdida , devendo aplicar-se a ambas as mesmas técnicas contabilísticas e a mesma categorização funcional . Esta orientação será tanto mais válida quanto mais a despesa pública que assume a forma de transferências predominar sobre a que se realiza através de compras, como acontece hoje na maior parte dos Estados membros da OCDE. A distinção entre tributação e despesa pública tende, então, a esbater-se, em virtude da enorme simetria que se observa entre a função distributiva da política fiscal e a função distributiva do sistema de transferências . A classificação dos benefícios fiscais como despesa pública permite alargar o leque de opções disponíveis para a redução do défice público, bem como controlar as situações de planeamento fiscal ou evasão fiscal lícita que pressionam o aumento das taxas marginais e, consequentemente, promovem a fraude fiscal . E quando o aumento da tributação está subordinado a requisitos formais especialmente rigorosos, o entendimento contrário, que conduz à classificação das eliminações de benefícios fiscais como um aumento dos impostos, pode tornar mais difícil reduzir a despesa fiscal do que cortar na despesa directa.

(...)

Um sistema de controlo da despesa pública deve atingir três objectivos: instigar a disciplina orçamental, facilitar a hierarquização estratégica da despesa ao longo de programas e projectos e encorajar a eficiência técnica no uso dos recursos orçamentais, ou seja, na obtenção dos resultados ao menor custo possível. Requer-se, assim, a ultrapassagem dos problemas advenientes, 1), da existência de um fundo de recursos comuns, onde a percepção dos custos de uso é vaga, 2), da dificuldade de conhecimento da preferência dos cidadãos e das situações de ‘passageiro borlista’ e, 3), da verificação de assimetrias de informação e de incompatibilidade de incentivos na estrutura hierárquica da Administração (v.g., a ocorrência de um problema de relação principal-agente entre o ministério das finanças e os demais).


Excerto de
O controlo ex ante e ex post da despesa fiscal, Claudia Dias Soares
AA VV, Estudos Jurídicos e Económicos em Homenagem ao Professor Doutor António de Sousa Franco, Almedina, 2006.

No comments:

Post a Comment